Crítica | As Aventuras de Tintim

Ao contrário do que se imagina, esta não é a primeira versão das histórias do jovem repórter criado pelo desenhista belga Hergé para o cinema. Em 1961, uma versão live-action das histórias de Tintim já havia sido lançada sem muito alarde – versão esta que pode ser apreciada integralmente aqui.

Cinquenta anos depois desta primeira tentativa, a obra-prima dos quadrinhos de aventura é novamente apresentada ao grande público por meio de um filme simplesmente delicioso e empolgante, produzido por dois dos maiores nomes da ação e fantasia do cinema, Steven Spielberg e Peter Jackson. A união de talentos de tal magnitude – assim como a expectativa por gerada por este fato – muitas vezes pode resultar em algo decepcionante. Não é este o caso aqui. Vale dizer, mesmo, que As Aventuras de Tintim é, com certeza, o filme mais leve e divertido do diretor Steven Spielberg desde Caçadores da Arca Perdida.

Vale dizer, porém, que o sucesso desta nova versão de Tintim não se deve apenas a Jackson, Spielberg e, claro, Hergé (homenageado na abertura do filme como o artista que faz um desenho do jovem). Escrito por Steven Moffat (responsável por séries de sucesso como Doctor Who e a excelente versão moderna de Sherlock para a BBC), Edgar Wright (o homem por trás de Todo Mundo Quase Morto e Chumbo Grosso) e Joe Cornish (do ótimo Ataque ao Prédio), As Aventuras de Tintim é um filme de ritmo alucinante, com sequencias de ação ininterruptas, diálogos rápidos e sempre espirituosos e um humor que vai desde o pastelão até diversas gags visuais inspiradíssimas. Utilizando o clichê da forma mais honesta possível, é o que se costuma chamar de uma montanha-russa de emoções.

Baseado principalmente nos livros O Segredo do Licorne e O Caranguejo das Pinças de Ouro, o filme segue a história do jovem repórter Tintim (voz e interpretação de Jamie Bell) e de seu cãozinho Milu às voltas com a réplica de um navio chamado Licorne. Ao comprar essa miniatura numa feira, Tintim passa a ser perseguido pelo misterioso e suspeito senhor Sakharine (Daniel Craig) que busca um segredo escondido no mastro do pequeno navio. Logo, Tintim é arrastado para uma trama que envolve o atrapalhado capitão Haddock (Andy Serkis, fabuloso como sempre) na busca de um suposto tesouro perdido. Assim como em Caçadores da Arca Perdida, a procura por este tesouro irá levar Tintim aos pontos mais exóticos do globo a enfrentar os mais perigosos – e, claro, incompetentes – inimigos.

Produzido com a tecnologia de motion capture, a mesma dos hoje defasados Expresso Polar e A Lenda de Beowulf, Tintim surpreende justamente pela liberdade dos movimento de câmera e fluidez da narrativa, questões que sempre foram problemáticas naquelas obras dirigidas por Robert Zemeckis. Mesmo a questão do brilho nos olhos – que fazia com que alguns personagens soassem apenas como manequins animados – desaparece de forma natural no filme. E mesmo que todos os personagens sejam caracterizados exatamente como nos quadrinhos, com os exageros típicos das caricaturas, bastam cinco minutos neste universo criado por Steven Spielberg para que esqueçamos que se trata de uma animação e que vejamos o filme como uma produção live-action autêntica. Contribui para isso a textura hiper-realista dos ambientes do filme e dos detalhes dos personagens (desde um pêlo saindo do nariz do capitão Haddock, o vento nos cabelos de Sakharin, as mãos do batedor de carteiras, o movimento das dunas), sem contar a fotografia em tons vivos que referencia diretamente as cores originais dos quadrinhos.

O roteiro de Moffat, Wright e Cornish não perde tempo na apresentação dos personagens. Assim, acabamos conhecendo Tintim mais por suas ações do que por seu histórico como grande aventureiro (evidenciado pelos diversos jornais e revistas espalhados por sua casa). Não há como negar, evidentemente, que Moffat, autor da primeira versão do roteiro, desenvolve seu Tintim como uma versão mais jovem não apenas de Indiana Jones (seja pela energia e otimismo inesgotável como a agilidade em desvendar mistérios e charadas) mas também com várias semelhanças com seu personagem mais famoso, o Doctor. Não por acaso, Tintim passa praticamente todo o filme falando, conversando, discutindo, relatando suas idéias, dúvidas e pensamentos sobre o que está acontecendo, assim como o milenar alienígena da série de TV. E, embora siga de maneira fiel a história e algumas sequencias dos livros em que se baseia, o roteiro faz questão de enriquecer estes momentos por conta de diálogos sempre dinâmicos, piadas que realmente funcionam e algumas gags impagáveis, como a do homem que é atingido e vê passarinhos em sua cabeça, na divertidíssima cena da falta de gravidade no avião e na súbita sobriedade do capitão Haddock.

A caracterização dos personagens é outro grande trunfo do filme. Enquanto Jamie Bell encarna seu Tintim como uma figura sempre afável e simpática, Andy Serkis consegue transformar o melodramático, exagerado  – e quase sempre bêbado – capitão Haddock em uma figura de alma nobre em busca da redenção, sem com isso cair em qualquer armadilha piegas (como naquele filme do cavalo). Já os agentes da Interpol Dupont e Dupond surgem perfeitos como alívio cômico por conta de sua extrema falta de percepção e de bom senso. Ajuda, e muito, serem interpretados por dois mestres da comédia como Nick Frost e Simon Pegg, que têm momentos dignos de O Gordo e o Magro no filme. Como o vilão Sakharine, Daniel Craig atua de forma sutil, elegante e sempre ameaçadora. Mas não há como falar de Tintim sem citar o cachorrinho Milu, com certeza o personagem mais interessante da história. Sempre pronto para salvar seu dono dos maiores perigos (que não são poucos), Milu é essencial para toda a continuidade da aventura, visto que sem ele o filme não duraria dez minutos. Nos quadrinhos, Milu tinha seus pensamentos mostrados por meio de balões . Aqui, não é preciso. Seus olhares e suas reações já fazem esse papel de forma mais do que eficiente.

E se todo o aspecto técnico de Tintim já é digno de aplausos, a condução de Steven Spielberg se revela magistral. Fazendo o filme com que provavelmente sonhou por toda a sua vida, o diretor deixa clara a sua alegria em poder desenvolver cenas de ação que antes seriam totalmente inviáveis. Há diversos momentos que já poderim entrar sem problema nenhum na lista das melhores já produzidas por ele, como a já antológica cena de perseguição pelas ruas da cidade de Bagghar, envolvendo uma moto, Tintim, os vilões, o capitão Haddock, um hotel, um tanque, os gêmeos, um falcão, uma inundação e, claro, Milu. Tudo isso em único plano sequencia de vários minutos.

O trabalho do montador Michael Khan, como sempre, traz momentos de rara beleza, como a bela fusão da cena passada no mar para uma poça de água, a invasão do deserto pelo grande navio Licorne e as constantes idas e vindas das lembranças do capitão Haddock e as lutas de seu ancestral. E mesmo lembrando a saga Piratas do Caribe, a sequencia em que o navio pirata fica pendurado no Licorne não é menos que sensacional.

O clima de aventura e nostagia de Tintim não ficaria completo sem a trilha sonora de John Williams. Retomando elementos que caracterizaram sua parceria com Spielberg nos anos 80, Williams, inicialmente, abre o filme com uma peça que lembra seu trabalho para Prenda-me se for capaz. No decorrer do filme, porém, é o Williams dos filmes de ação que retorna com todo o seu talento, com uma trilha que complementa de forma eficaz a história. Contando ainda com as sempre divertidas citações de obras dos dois cineastas (como quando Haddock confunde Milu com um macaco rato da Sumatra ou o topete do herói saindo do mar), Tintim é um filme que consegue resgatar a magia e a diversão que pareciam ter sumido do cinema nos últimos anos. Nada contra heróis problemáticos ou realidades alternativas, mas é muito bom ver um filme em que um jovem, seu cachorro e seu companheiro bêbado se envolvem em altas confusões e vão viver a maior aventura de suas vidas. Quem nem na Sessão da Tarde.

*****

Um comentário sobre “Crítica | As Aventuras de Tintim

  1. Britto disse:

    Excelente texto!

    Concordo que o Capitão Haddock foi exagerado, mas como um todo, ficou muito bom. E como eu disse no blog, acho que a trama paralela dos Dupondt poderia ser mais desenvolvida.

    Também achei as transições de cenas fantásticas, usando elementos de uma para entrar na outra. A melhor mesmo é a batalha dos piratas!

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